quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os óculos do intelectual - Parte II

O quadro nítido

24 de dezembro
Alguma hora da noite

Ouça baixinho a música.

        Como de costume, Ramon estava ouvindo seus CDs. Aproveitando seu tempo da forma que mais gostava, que mais lhe satisfazia. Seu copo de whisky estava pela metade, na mesa de centro da sala. Sua casa estava tomada pelas claves, que saltavam das caixas de som, brincando no ar ao sabor do vento fraco que entrava da janela, balançando a cortina. Nessas condições ele estava. Seu aparelho de som ligado. Rolando a seu bel-prazer um CD de músicas em formato mp3. Músicas variadas de artistas variados. Foi quando começou a tocar uma canção calma, de notas serenas. Porém forte.

“Hoje eu quero a rua cheia de sorrisos francos
De rostos serenos, de palavras soltas
Eu quero a rua toda parecendo louca
Com gente gritando e se abraçando ao sol”

        De súbito, Ramon passou a prestar atenção na letra. Os quatro primeiros versos lhe chamaram a atenção de uma forma tão grande que ele simplesmente parou. Ficou estatuatizado por algum tempo. Apenas ouvindo a voz voraz.

“Hoje eu vou pedir desculpas pelo que eu não disse
Eu até desculpo o que você falou
Eu quero ver meu coração no seu sorriso
E no olho da tarde a primeira luz”

        Teve início em sua mente um processo de lembrança. Sua memória foi atiçada, fazendo vir à tona alguns fatos. Desencadeando reflexões.
Lembrou-se do Natal passado, quando uma criança desejou-lhe felicidades no Natal e de pronto sua resposta foi:
O Natal é uma grande farsa, meu caro jovem. E Papai Noel não existe também...

        Antes de continuar, visando desconstruir o suposto mito Jesus Cristo a criança já havia corrido com lágrimas nos olhos. Para ele, tratava-se de uma ajuda na evolução das criança enquanto havia tempo. Porém agora, ouvindo a música, cogitou pela primeira vez a possibilidade de ter ofendido a pequena, ter a desiludido, como se a tivesse despertado de um sonho bom acordando-a de forma brusca. Será que teria errado? Será tão desnecessária assim a inocência de uma criança sustentando concepções vistas por ele como erradas?

“Hoje eu quero que os boêmios gritem bem mais alto
Eu quero um carnaval no engarrafamento
E que dez mil estrelas vão riscando o céu
Buscando a sua casa no amanhecer”

        Certa vez, em meio a um infernal engarrafamento na avenida, quando estava de volta para casa, no ônibus, teve um acesso de raiva. Estava sentado em uma cadeira do corredor, bastante cansado, quando viu pela janela o motivo do transtorno. Estava ocorrendo um desfile de Natal. Pessoas animadas fantasiadas de duendes, de ajudantes do "bom velhinho" tomavam a via. Faixas e cartazes com felicitações e desejos de boas festas . Foi quando a crise teve início. Começou a pensar baixinho, alto, e quando viu já estava gritando. “O que tem de feliz nesta merda de engarrafamento?” Xingava o Natal, xingava o trânsito congestionado, xingava o sistema. Xingava. Parecia um louco. Foi duramente criticado por alguns passageiros indignados com suas palavras incisivas.
Começou a refletir sobre aquilo que tinha feito, o que tinha falado, o que tinham os outros pensado.

Bebeu mais um gole de whisky aumentou o volume do som e continuou a escutar o que a música tinha a lhe dizer

“Hoje eu vou fazer barulho pela madrugada
Rasgar a noite escura como um lampião
Eu vou fazer seresta na sua calçada
  Eu vou fazer misérias no seu coração”

        O relógio já marcava meia-noite. Já era Natal. Para ele, hora de dormir. Ramon tinha certeza que o Papai Noel não iria descer pela chaminé da sua casa para esconder o seu presente. Na sua janela não havia meias ansiosas por doces. Na sua sala não havia uma árvore decorada. Na sua casa não existia ninguém fora ele próprio. Não havia sorrisos. Seguiu até a janela e viu a comemoração natalina dos vizinhos. A família inteira unida. Celebrando. Celebrando estarem ali.
         Incrivelmente decidiu sair e ir até à rua. Havia algumas pessoas cumprimentando-se. Uma criança veio correndo e disse: Moço, Feliz Natal! Dessa vez Ramon não se ofendeu. Não sabia por que. Deu um sorriso tímido e seguiu andando. Tirou a neve dos óculos e foi adiante. Percebeu casais se abraçando, idosos sorrindo, crianças brincando. Não se lembrava mais de tudo aquilo. Daquela comunhão. Havia se isolado dessa comemoração toda havia tempos.
        De tanto andar e se espantar com a felicidade dos outros, sem recriminar, chegou à pracinha do bairro. Limpou novamente seus óculos embaçados e pôde ver que estava se apresentando no local um coral formado por moradores, o qual entoava cantos natalinos. O repertório foi escolhido de maneira bastante acertada. Só cantavam as músicas mais conhecidas. Surpreendeu-se consigo mesmo ao perceber que estava gostando daquilo. Daquele clima. E sabia cantar todas as músicas. “Meu Deus, eu cantei no coral da escola!”. Emocionou-se.
        Como bom observador analisou toda a situação. Ali a felicidade era. Ali a neve fraca que caia, as pessoas cantando, as outras assistindo, rindo, as luzes dançantes formavam um quadro. Um nítido quadro em movimento. Uma tela real que não mais se repetiria da mesma forma, nem estava sendo ou poderia ser vista da mesma maneira pelas diferentes pessoas que estavam lá. Sentiu-se privilegiado por fazer parte daquilo. A magia do Natal estava ali. A magia do viver. Ela era real. Podia vê-la através das lentes dos seus óculos, que não estavam mais embaçadas.
Olhou para o céu negro da noite. Estava todo estrelado. Foi quando viu uma estrela cadente.

O coral lançava os últimos versos de “Happy Xmas (War is Over)”


(Aconselho ouvirem as duas músicas presentes no post para poderem entender melhor e mesmo entrarem no clima do texto)
(Primeira parte abaixo)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Os óculos do intelectual - Parte I

O desfoque




Ramon era um intelectual, ou pelo menos se considerava um. Lia, estudava e era bastante esclarecido.Usava óculos. Quer mais intelectual que isso? Acreditava ser um bom entendedor da trajetória humana em sociedade e do próprio homem em si. Sempre pensava de maneira diferente dos demais leigos. Para ele, grande parte dos fatos ocorridos não passava de convenções sociais, ou eventos de marketing capitalistas. Lutava contra a alienação.
            Já fazia cerca de quatro anos que havia decidido, com sua convicção característica. Não comemoraria mais o Natal! Mas por que comemorar uma festa na qual estavam fundidos elementos cristãos e capitalistas? Tudo o que ele tinha por mecanismos de dominação, alienantes ou segregadores e promovedores de miséria estavam presentes. Desde então, o Natal para ele era um data normal, sem grandes diferenciais. O problema, na verdade, era ter paciência para ignorar os corais itinerantes que batiam à sua porta atrapalhando seus afazeres e até, irritantemente, impedindo o seu sono tão precioso sono.
            Da rua, a sua casa era a única em que as luzes não dançavam. A rua era como um pisca-pisca com defeito e a lâmpada defeituosa, a que não brilhava, era aquela casa de aparência sóbria. Não havia pinheiro, não havia qualquer objeto ou símbolo que remetesse ao natal. Sem sinal de Papai Noel, logicamente. Afinal, não seria conivente com a existência de um ser imaginário que presenteia as crianças ricas e ignora os lares humildes. Para ele, esse era um senhor panaca. Um velho safado.
            O dia 24 de dezembro era um bocado caótico. Véspera de Natal, mais poderia ser véspera da tolice humana. Demorava duas horas a mais para voltar para casa. Culpa do Natal. Chegava a casa às 08 da noite, tomava banho e se deliciava com seus DVDs de filmes e músicas. Morava sozinho e não se achava solitário. Talvez por acreditar que sozinho viveria melhor. Talvez...
A programação da T.V. a essa altura era insuportável. Insuportável. Não aguentava assistir a todos aqueles especiais natalinos, a todas aquelas declarações de união, perdão e amor ao próximo. Ora, não é preciso existir uma data para fazer o bem aos outros. Façam isso todo dia! E não só hoje! Murmurou após ter ligado a televisão, esquecendo por um momento de que era véspera de Natal.
            Por volta da meia-noite ia dormir, não por algum motivo natalino em especial. Não pela estrela cadente, não pela manjedoura, não por já ser, de fato, Natal. Na verdade, dormir nesse horário era um luxo para Ramon. Como trabalhava, era obrigado a dormir mais cedo...
            E seu dia de Natal era bem feliz... Acordava já pelas 02 horas da tarde. Para ele era sensacional.  Punha seus inseparáveis óculos e chegava à sala-de-estar, onde não havia presente algum. Ótimo. Até que enfim aprenderam a não mais me irritar. Não havia restos da ceia, pois não tinha existido ceia alguma. E para ele era fantástico. Havia a alegria de aproveitar mais um feriado, criado pela sociedade, claro. Quem nasceu? Ora, por favor!
O dia seguia normalmente. Para ele a sensação era a de que a sociedade não lhe vencia naquele dia. Naquele dia não. Só no dia seguinte, quando precisava ir ao trabalho. Para poder receber seu salário. Para poder se manter. Para movimentar a economia. Para manter o sistema.
Mas este Natal seria diferente...