segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Os óculos do intelectual - Parte I

O desfoque




Ramon era um intelectual, ou pelo menos se considerava um. Lia, estudava e era bastante esclarecido.Usava óculos. Quer mais intelectual que isso? Acreditava ser um bom entendedor da trajetória humana em sociedade e do próprio homem em si. Sempre pensava de maneira diferente dos demais leigos. Para ele, grande parte dos fatos ocorridos não passava de convenções sociais, ou eventos de marketing capitalistas. Lutava contra a alienação.
            Já fazia cerca de quatro anos que havia decidido, com sua convicção característica. Não comemoraria mais o Natal! Mas por que comemorar uma festa na qual estavam fundidos elementos cristãos e capitalistas? Tudo o que ele tinha por mecanismos de dominação, alienantes ou segregadores e promovedores de miséria estavam presentes. Desde então, o Natal para ele era um data normal, sem grandes diferenciais. O problema, na verdade, era ter paciência para ignorar os corais itinerantes que batiam à sua porta atrapalhando seus afazeres e até, irritantemente, impedindo o seu sono tão precioso sono.
            Da rua, a sua casa era a única em que as luzes não dançavam. A rua era como um pisca-pisca com defeito e a lâmpada defeituosa, a que não brilhava, era aquela casa de aparência sóbria. Não havia pinheiro, não havia qualquer objeto ou símbolo que remetesse ao natal. Sem sinal de Papai Noel, logicamente. Afinal, não seria conivente com a existência de um ser imaginário que presenteia as crianças ricas e ignora os lares humildes. Para ele, esse era um senhor panaca. Um velho safado.
            O dia 24 de dezembro era um bocado caótico. Véspera de Natal, mais poderia ser véspera da tolice humana. Demorava duas horas a mais para voltar para casa. Culpa do Natal. Chegava a casa às 08 da noite, tomava banho e se deliciava com seus DVDs de filmes e músicas. Morava sozinho e não se achava solitário. Talvez por acreditar que sozinho viveria melhor. Talvez...
A programação da T.V. a essa altura era insuportável. Insuportável. Não aguentava assistir a todos aqueles especiais natalinos, a todas aquelas declarações de união, perdão e amor ao próximo. Ora, não é preciso existir uma data para fazer o bem aos outros. Façam isso todo dia! E não só hoje! Murmurou após ter ligado a televisão, esquecendo por um momento de que era véspera de Natal.
            Por volta da meia-noite ia dormir, não por algum motivo natalino em especial. Não pela estrela cadente, não pela manjedoura, não por já ser, de fato, Natal. Na verdade, dormir nesse horário era um luxo para Ramon. Como trabalhava, era obrigado a dormir mais cedo...
            E seu dia de Natal era bem feliz... Acordava já pelas 02 horas da tarde. Para ele era sensacional.  Punha seus inseparáveis óculos e chegava à sala-de-estar, onde não havia presente algum. Ótimo. Até que enfim aprenderam a não mais me irritar. Não havia restos da ceia, pois não tinha existido ceia alguma. E para ele era fantástico. Havia a alegria de aproveitar mais um feriado, criado pela sociedade, claro. Quem nasceu? Ora, por favor!
O dia seguia normalmente. Para ele a sensação era a de que a sociedade não lhe vencia naquele dia. Naquele dia não. Só no dia seguinte, quando precisava ir ao trabalho. Para poder receber seu salário. Para poder se manter. Para movimentar a economia. Para manter o sistema.
Mas este Natal seria diferente...

2 comentários:

  1. "Naquele dia não. Só no dia seguinte, quando precisava ir ao trabalho. Para poder receber seu salário. Para poder se manter. Para movimentar a economia. Para manter o sistema.
    Mas este Natal seria diferente..."
    Pow Way.. tá otimo esse texto.. Escreves maravilhosamente bem.. Daqui a alguns anos vão perguntar: "Quem é teu cronista favorito?"... Creio que muitos responderão teu nome..
    Serio, escreves muito bem..

    Thaylinne

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  2. Uma das coisas mais difíceis é responder a um elogio sincero! Hehehe! Só tenho a agradecer e desejar que continue e continuem a visitar o blog.
    Aguarde a segunda parte! =D

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