O desfoque
Ramon era um intelectual, ou pelo menos se considerava um. Lia, estudava
e era bastante esclarecido.Usava óculos. Quer mais intelectual que isso? Acreditava ser um bom entendedor da trajetória
humana em sociedade e do próprio homem em si. Sempre pensava de maneira diferente dos demais
leigos. Para ele, grande parte dos fatos ocorridos não passava de convenções
sociais, ou eventos de marketing capitalistas. Lutava contra a alienação.
Já fazia cerca de quatro anos que
havia decidido, com sua convicção característica. Não comemoraria mais o Natal! Mas por que comemorar uma festa na
qual estavam fundidos elementos cristãos e capitalistas? Tudo o que ele tinha
por mecanismos de dominação, alienantes ou segregadores e promovedores de
miséria estavam presentes. Desde então, o Natal para ele era um data normal,
sem grandes diferenciais. O problema, na verdade, era ter paciência para
ignorar os corais itinerantes que batiam à sua porta atrapalhando seus afazeres
e até, irritantemente, impedindo o seu sono tão precioso sono.
Da rua, a sua casa era a única em que
as luzes não dançavam. A rua era como um pisca-pisca com defeito e a lâmpada
defeituosa, a que não brilhava, era aquela casa de aparência sóbria. Não havia
pinheiro, não havia qualquer objeto ou símbolo que remetesse ao natal. Sem
sinal de Papai Noel, logicamente. Afinal, não seria conivente com a existência
de um ser imaginário que presenteia as crianças ricas e ignora os lares
humildes. Para ele, esse era um senhor panaca. Um velho safado.
O dia 24 de dezembro era um bocado
caótico. Véspera de Natal, mais poderia
ser véspera da tolice humana. Demorava duas horas a mais para voltar para
casa. Culpa do Natal. Chegava a casa
às 08 da noite, tomava banho e se deliciava com seus DVDs de filmes e
músicas. Morava sozinho e não se achava solitário. Talvez por acreditar que sozinho
viveria melhor. Talvez...
A programação da
T.V. a essa altura era insuportável. Insuportável.
Não aguentava assistir a todos aqueles especiais natalinos, a todas aquelas
declarações de união, perdão e amor ao próximo. Ora, não é preciso existir uma data para fazer o bem aos outros. Façam
isso todo dia! E não só hoje! Murmurou após ter ligado a televisão,
esquecendo por um momento de que era véspera de Natal.
Por volta da meia-noite ia dormir,
não por algum motivo natalino em especial. Não pela estrela cadente, não pela
manjedoura, não por já ser, de fato, Natal. Na verdade, dormir nesse horário
era um luxo para Ramon. Como trabalhava, era obrigado a dormir mais cedo...
E seu dia de Natal era bem feliz...
Acordava já pelas 02 horas da tarde. Para ele era sensacional. Punha seus inseparáveis óculos e chegava à sala-de-estar,
onde não havia presente algum. Ótimo.
Até que enfim aprenderam a não mais me
irritar. Não havia restos da ceia, pois não tinha existido ceia alguma. E
para ele era fantástico. Havia a alegria de aproveitar mais um feriado, criado
pela sociedade, claro. Quem nasceu? Ora,
por favor!
O dia seguia
normalmente. Para ele a sensação era a de que a sociedade não lhe
vencia naquele dia. Naquele dia não. Só no dia seguinte, quando precisava ir ao
trabalho. Para poder receber seu salário. Para poder se manter. Para movimentar
a economia. Para manter o sistema.
Mas este Natal
seria diferente...
"Naquele dia não. Só no dia seguinte, quando precisava ir ao trabalho. Para poder receber seu salário. Para poder se manter. Para movimentar a economia. Para manter o sistema.
ResponderExcluirMas este Natal seria diferente..."
Pow Way.. tá otimo esse texto.. Escreves maravilhosamente bem.. Daqui a alguns anos vão perguntar: "Quem é teu cronista favorito?"... Creio que muitos responderão teu nome..
Serio, escreves muito bem..
Thaylinne
Uma das coisas mais difíceis é responder a um elogio sincero! Hehehe! Só tenho a agradecer e desejar que continue e continuem a visitar o blog.
ResponderExcluirAguarde a segunda parte! =D